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Desculpa, mamã…

nuno29

GF Ouro
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Martim até nem gosta de gelado de morango!

Hoje, pelo menos, procura convencer-se a toda a força de que gelado de morango seria a última coisa que neste momento gostaria de comer. Assim, o terem-no obrigado a comer sozinho no quarto não é castigo nenhum. Salsichas com puré e sem sobremesa.

— E depois? — grita Martim do quarto para a cozinha, ao lado, através das paredes finas. — Não quero saber do vosso estúpido gelado para nada! Eu até nem gosto!

Do outro lado da parede, os pais jantam com o irmão mais pequeno. Ninguém responde a Martim. Este põe-se mais um bocado à escuta, com a cabeça inclinada, mas só lhe chega aos ouvidos o bater dos talheres, o pousar abafado do jarro da água, o tilintar dos copos. Pelo meio, o bater enervante de Jorge com a colher de plástico na mesinha da cadeira de bebé. Martim até ouve o zumbido do frigorífico entre a confusão dos ruídos.

Só as vozes que queria ouvir continuam caladas. Os pais não dão importância a Martim. Gostem de mim! Vocês… vocês… Martim aperta os dentes com força, esmaga a raiva entre eles. Se conseguisse mostrar-se suficientemente indiferente, não iam poder provar que ele tinha feito alguma coisa de mal. Nada consegue atingir aquele que está inacessível. Martim olha em frente com os olhos muito abertos, porque é assim que ele consegue reprimir melhor as lágrimas. Se impedir as pálpebras de bater, consegue também impedir as lágrimas estúpidas de escorrerem pelos cantos dos olhos. As lágrimas de perrice que não quer mostrar a ninguém e que não quer admitir, nem para ele próprio.

Porque Martim é forte.

É muito mais forte do que o palerma do seu irmão mais pequeno, que não sabe fazer nada. Nada, para além de gritar, beber, comer, e fazer nas calças.

Mas quando estica os braços pequenos e gordos, a mãe pega nele. E, então, o que mais faz Martim ficar zangado é a cara radiante dela, como se Jorge fosse a melhor coisa do mundo. Como disse uma vez, quando Jorge ainda só tinha umas semanas. A mãe debruçou-se sobre a caminha de grades e disse muito baixinho: “Para mim, és a melhor coisa do mundo.” E ele, Martim estava no quarto, só que a mãe esquecera-se. Estava somente à distância de um braço das costas dela. Pareceu-lhe então que o quadrado cor-de-laranja do tapete sobre o qual se encontrava era uma ilha que, de repente, se afastava com ele. Para muito longe. Tão longe, que a mãe nem conseguiria ouvi-lo, se a chamasse. Os pais estão sempre a dizer que gostam tanto de Martim como de Jorge. Mas não é verdade. Gostam mais de Jorge.

Ele constata isso todos os dias.

Sente-o a todo o momento. Martim vem sempre depois de Jorge.

Quando Martim pede: “Mamã, é muito importante. Tens de vir agora.” A mãe não vem se naquele momento está com o irmãozinho ao colo, ou a dar-lhe de comer, ou a dar-lhe banho, ou a mudar-lhe as fraldas.

— Já vou! — costuma ela gritar.

Mas “já” é muito tarde para Martim.

Ele percebe que o irmão bebé não é capaz de fazer nada sozinho, que ainda não sabe dizer nada. E que, por isso, precisa muito do amor da mãe para se sentir protegido. Mas Martim também não é capaz de falar e de dizer o que se passa no seu coração.

Ele precisa tanto do amor da mamã como Jorge.

— O vosso Martim é uma criança muito fechada — dissera uma vez a professora em conversa com os pais. — Ele tem muita dificuldade de expressar o que se passa com ele, de mostrar o que sente. Quer, mas não consegue. E, se conseguisse, ser-lhe ia tudo mais fácil.

Por Martim não conseguir fazer o que gostaria é que muitas vezes é atrevido. Muitíssimo, até. Por causa da sua fúria impotente, do seu bloqueio e da incapacidade em abrir-se.

E, em vez de pedir desculpa por alguma coisa que fez de mal, vem, ainda por cima, outra asneira que piora tudo. Uma discussão puxa outra até que Martim é todo raiva e cólera.

A cólera cresce nele, sobe por ele acima e abafa qualquer ternura.

Na verdade, Martim gostaria tanto de estender apenas os braços à mãe, sem precisar de dizer mais nada! Os braços falariam por si: “Mamã, não fiques mais zangada comigo. Desculpa!”

O Jorge consegue fazer isso: falar com os braços.

Consegue-se tocar no seu amor.

Martim é forte, mas, por isso, Jorge ainda é mais.

Esse anãozinho chorão tira a Martim um pouco do amor dos pais de que ele tanto precisa. O amor que já houve. Só para ele. E que agora está dividido por dois concorrentes desiguais. Entre um grande, que não é nada grande, e um pequeno, que não é nada pequeno.

Por Martim ver as coisas desta maneira é que não quis ajudar a mãe nessa tarde quando ela precisou dele.

— Martim, anda cá depressa!! — chamou para a sala. — Segura aqui o Jorge em cima da mesa. Tenho de ir buscar uma coisa ao armário da roupa.

— Já vou — respondeu Martim de forma arrastada. Exactamente como a mãe costuma fazer. E não saiu do lugar.

— Não é já. É imediatamente!!!

Por fim lá se levantou, bem devagarinho, e atravessou o hall com toda a calma. E a mãe a ver tudo, do quarto de banho.

Martim olhou para o chorão do Jorge com um olhar propositadamente aborrecido, as mãos enterradas bem no fundo nos bolsos das calças. Primeiro a mãe tinha de pedir-lhe calmamente que, por favor, tirasse as mãos dos bolsos para segurar no Jorge.

Mas a mãe só sibilou entre dentes “inútil” e deitou-lhe um olhar frio. Depois, pegou ela mesma no Jorge e correu com ele despido e a chorar para o armário da roupa.

Com movimentos frenéticos tentou tirar uma toalha de banho da grande pilha de toalhas. Nisto, toda a roupa da prateleira cai ao chão e a toalha que já tinha na mão também lhe escorrega. Martim continuou no mesmo sítio com as mãos nos bolsos e riu-se. O que mais gostou foi de ver Jorge que esperneava e gritava e saltava para cima e para baixo no braço da mãe, porque ela teve que curvar-se e endireitar-se muitas vezes até ter conseguido apanhar tudo novamente.

— Espera, que já vais ver!! — gritou a mamã a Martim, furiosa.

Passa-lhe à frente e, apesar de ter as mãos ocupadas, conseguiu fechar a porta do quarto de banho com força na cara de Martim. Só depois da porta fechar e de ouvir as palavras suaves da mãe a acalmar o irmãozinho que ainda estava a chorar, é que se lhe cortou o riso.

A voz carinhosa da mãe dentro do quarto de banho enervou tanto o Martim, que ele bateu com os punhos contra a porta. Uma só vez, mas com tanta força, que a porta até tremeu.

Com o susto, Jorge deixou de chorar.

O punho até doeu bastante a Martim, da pancada.

Mas o que mais lhe doeu foram as palavras da mamã. Uma palavra pequena, curta e dura:

— Desaparece!!

E Martim desapareceu para o seu quarto, embora, na verdade, tivesse querido desaparecer para sempre. Em vez disso, ficou horas sem sair do quarto. Nem quando o pai chegou a casa, ele saiu.

Chamou pelo filho, zangou-se, tentou atraí-lo com gelado de morango.

Mas a mãe disse:

— Bem, deixa-o lá! Que fique no seu buraco. Não vai ter gelado. Devias ter visto como ele tornou a portar-se hoje…

A mãe já nem precisa de contar nada ao pai. Está farto de saber como é que uma discussão daquelas começa. É sempre a mesma história: Martim implica com a mãe, por achar que ela já não gosta tanto dele como dantes, quando Jorge ainda não existia.

E a mãe reage cada vez pior. Diz coisas que não queria nada dizer.

Martim sabe que a mãe diz palavras feias porque está furiosa. Mas, mesmo assim, magoam.

E a mãe sabe que Martim pensa em palavras bonitas, mesmo que esteja calado. Mesmo assim, gostava de ouvi-las de vez em quando. Um simples “Desculpa, mamã”, uma vez por outra.

Mas Martim não sai do quarto, nem pede desculpa. Grita através da parede:

— Não me interessa o vosso estúpido gelado! Eu nem gosto!

Também à mãe o gelado não sabe bem. Tira uma colherzinha cheia, deixa-o arrefecer e pensa em Martim, ao lado. Diz para si:

— Foi ele quem começou! O castigo é justo. Zangou-me de propósito e ainda por cima, em vez de ajudar, riu-se de forma atrevida.

A mãe afasta a tigela cheia de gelado. Não. Não devia ter dito aquele “Desaparece!”.

Levanta-se devagarinho e entra no quarto de Martim.

Primeiro olham-se os dois, em silêncio.

Vai já começar a ralhar outra vez, pensa Martim. Vai já voltar a perguntar-me porque é que eu hoje à tarde fui tão mau.

Mesmo assim…

Se agora viesse ter comigo sem falar… Era bom.

A mãe sente agora como é, quando se quer dizer uma quantidade de coisas e não se consegue. Quando uma pessoa quer aproximar-se de outra e não é capaz. Naquele momento, ali de pé, com os olhos baixos e numa posição rígida, Martim parece-lhe ainda mais indefeso do que o alegre Jorge, que continua ao lado a bater na mesa.

— Anda — diz baixinho — Anda. — E vai ela ao seu encontro.

Martim não gosta que lhe façam festas na cabeça ou que o apertem com força e lhe dêem muitos beijos.

Por isso a mamã só lhe pega na mão e acaricia-lha.

Não durante muito tempo.

Dá-lhe um beijo na testa, cheio de ternura.

E exprime, assim, tudo o que o próprio Martim quer dizer.

Ele sorri, embaraçado. Mas a mamã percebeu o sorriso perfeitamente.
 
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