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Epidemia. Quando a peste fechou a cidade do Porto em 1899

Nelson14

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Fev 16, 2007
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Quando a peste fechou o Porto




Foto de Aurélio Paz dos Reis, cedida por Centro Português de Fotografia

Depois de o médico investigador Ricardo Jorge comunicar o aparecimento de peste bubónica no Porto, em 1899, seguiram-se meses de agitação e revolta face a Lisboa, por causa da imposição de um cordão sanitário
Gregorio Blanco, espanhol, 47 anos de idade, era carrejão de bordo e de armazéns de porto e, ultimamente, carregava trigo para os armazéns da casa Barreto. Há uns tempos que não andava a sentir-se bem. Achava-se “adoentado” e queixava-se “d’uma pontada no lado direito”. A 5 de junho, “depois de um dia de serviço, entrou no domicílio taciturno e cambaleante”, o que foi interpretado por amigos e vizinhos como resultado de bebida a mais. “Foi à latrina, e como se demorasse, os companheiros foram dar com ele já morto.” Nada demais a assinalar. Enterre-se.

Alguns dias depois, porém, novas maleitas são sentidas em quem partilhava com Gregorio o nº 88 da Rua Fonte Taurina, bem no coração da Ribeira. O mesmo aconteceu em casas vizinhas. E, depois, em locais próximos: Rua dos Mercadores, Escadas dos Guindais, Muro dos Bacalhoeiros… Ou noutros pontos da cidade, em pessoas que, soube-se depois, tinham convivido em determinada altura com os anteriores afetados.



Incêndios O estado de insalubridade de alguns alojamentos
obrigou a queimadas por parte dos bombeiros
Foto de Aurélio Paz dos Reis, cedida por Centro Português de Fotografia

A notícia de que andava por ali um “andaço” circulava de boca em boca. A 4 de julho, um mês depois da morte de Gregorio, “um negociante da Rua de S. João” envia um bilhete ao diretor do Posto de Saúde Municipal, Ricardo Jorge, alertando-o das maleitas de alguns que, entretanto, tinham resultado em óbitos. Lente da Escola Médico-Cirúrgica, Ricardo Jorge envia primeiro um seu funcionário ao local. Fica a saber que anda por ali “uma espécie de febre com nascidas debaixo dos braços”, uns “bubões”. No dia 6, o médico mete pés ao caminho. Correlaciona casos (dez infetados) e mortes (quatro), recolhe amostras. No seu próprio laboratório bacteriológico – munido já de um microscópio –, começa a não ter dúvidas: tudo indicava tratar-se da peste bubónica, vulgo “peste negra”.


Ricardo Jorge O médico e diretor do Serviço Municipal de Higiene no seu laboratório.
Foto de Aurélio Paz dos Reis, cedida por Centro Português de Fotografia

No dia 12 informa, por ofício, o governador civil da cidade, Pina Callado – que, por sua vez, põe ao corrente as autoridades em Lisboa –, com a recomendação de “internamento e isolamento de todos os contagiados”. A 28 de julho reafirma a sua convicção, já com os resultados dos exames bacteriológicos. A confirmação seria validada a 8 de agosto pelo diretor do Instituto de Bacteriologia de Lisboa, Câmara Pestana (que morreria vítima da própria peste pouco depois).

O calendário marcava o ano de 1899 e o bacilo tinha sido descoberto quatro anos antes por Alexandre Yersin. Em 1840, esta peste tinha gerado uma epidemia na província de Yunnan, na China. Cerca de 60 anos depois chegava ao Porto, sem que alguma vez se tivesse identificado a sua porta de entrada.

Quando, a 17 de agosto, “o governo do progressista Luciano Castro” decreta medidas de “defesa do reino” que, a 23, se reforçam com a imposição de um cordão sanitário em torno da cidade “alargada” – que impedia entradas e saídas do Porto –, já a confusão reina ali. Entre as duas datas, levam-se a cabo ações de fiscalização e desinfeção em zonas portuárias e nas estações de caminho de ferro. Mercadorias ficam paradas nos portos, sem chegarem às casas de comércio. Estas, assim como algumas fábricas, encerram portas. Há gente que fica sem emprego e, por isso, condena quem decreta a peste. Há manifestações nas ruas e os jornais ajudam à missa. Diaboliza-se Ricardo Jorge, que passa a fazer-se acompanhar por escolta policial, mesmo que nunca tenha defendido o cordão sanitário. A burguesia, em franco progresso económico, vê a sua vida andar para trás e convoca reuniões no átrio do Palácio da Bolsa. E contabilizam-se cerca de 20 mil saídas da cidade antes da chegada das tropas, pois a quem tentasse “iludir o cerco” aplicava-se “pena de prisão de três a seis meses”.

A situação piora quando surgem as tropas: Infantaria 3 de Viana do Castelo, Infantaria 20 de Guimarães, Cavalaria 6 de Chaves, Cavalaria 10 de Aveiro. Cerca de 2 500 homens deveriam estabelecer “um cerco militar que partia de Leça da Palmeira, seguia o rio Leça, S. Mamede Infesta, Ermesinde, Valbom, passando o rio Douro, em Avintes, e indo até ao mar, em Gaia, na zona da Madalena. O cruzador Adamastor seria mobilizado para garantir o cerco marítimo”.


O “boicote” de Lisboa
Ninguém aceitou de bom grado uma decisão tomada pelo governo central e por pessoas que nunca tinham posto os pés no terreno. As gentes do Porto viram nesta medida uma “humilhação”. A burguesia e os comerciantes, que tinham criado a ideia do Porto “cidade do trabalho”, olhavam a decisão de Lisboa como uma forma de boicote aos tempos de prosperidade que viviam. Os políticos, alguns republicanos, encaravam isto como uma consequência do movimento dos revoltosos de 31 de janeiro, ocorrido oito anos antes (ainda por cima, tudo surgia em tempo de eleições, nas quais foram eleitos, pela primeira vez, três republicanos do Porto, apelidados de “deputados da peste”) e recordavam outro cerco à cidade, durante a guerra civil de 1832-34. O governador civil, Pina Callado, bem como o presidente da câmara, João Lima Júnior, demitiram-se, mas as suas demissões não foram aceites. Ricardo Jorge, que considerou o cordão sanitário “um disparate máximo”, acabou refugiando-se em Lisboa.


Os peritos Ricardo Jorge reúne-se com especialistas indicados pela vereação do Porto
Foto de Aurélio Paz dos Reis, cedida por Centro Português de Fotografia

Os jornais – Comércio do Porto, Jornal de Notícias e Voz Pública – negavam a peste, alimentavam polémicas em títulos de primeira página com discursos de vitimização face à capital. Ao ponto de Lisboa considerar “urgente” a necessidade de “pronta repressão” dos seus “desmandos”. Aos processos juntou-se a suspensão. Para a driblar, o JN mudou de nome duas vezes, para Notícias, primeiro, e Diário da Manhã, depois. A verdade é que conseguiu, neste final do ano de 1899, aumentar a tiragem de 16 mil para 22 mil exemplares.
Tudo isto acabou por expor uma cidade pobre e suja, com a sua classe operária a viver em condições insalubres e sem saneamento básico. Abundavam os ratos e as pulgas – talvez a razão mais plausível da transmissão do bacilo ao homem. Houve desinfestação, casas queimadas.

Depois de ter sido nomeado inspetor-geral de saúde pública, em Lisboa, Ricardo Jorge promove a criação do Instituto Central de Higiene, o que leva à criação de uma Direção-Geral da Saúde. A epidemia foi naturalmente controlada. O cordão sanitário foi levantado em dezembro, a tempo das festas de Natal. Oficialmente, registaram-se 320 casos, com 132 óbitos. Mas há quem ainda hoje defenda que “nunca mais o Porto foi o mesmo”. Instalou-se o ressentimento da segunda maior cidade do País, “capital do Norte”, face ao poder de Lisboa.

Este texto foi escrito com base em: A Peste Bubónica no Porto, Ricardo Jorge; O cerco da peste no Porto, tese de mestrado de David Pontes; O Cerco – Sobre a epidemia de peste bubónica no Porto em 1899 e sobre a sua documentação fotográfica, ensaio de Renato Roque. Depoimento de Jorge Alves, docente de História da FLUP.

Fonte:visao.sapo
 
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