Livros desde o berço

Luana

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O livro deve ser um elemento no imaginário e na vida da criança, desde os livros com que brinca no banho, até aos que vê nas estantes de casa. E o respeito pelo livro deve ser um dos valores veiculados pelos pais.

Falar de leitura é, para muitas pessoas, falar em descodificação dos símbolos alfabéticos. Mas, para lá desse tipo de leitura, há leitura sempre que uma criança interpreta imagens, símbolos, situações representadas no papel, mesmo que de um modo subjectivo e até “errado” (com aspas!).
Ler não é apenas pegar num bloco de folhas, agregadas e arranjadas esteticamente, mas entrar num mundo diferente e fascinante, seja através do livro clássico, seja de outras formas que a extraordinária evolução tecnológica permite.


São vários os objectivos da leitura:


– obter informação, isto é, ter acesso rápido e eficaz a fontes de informação actualizadas e apresentadas de um modo mais fácil de digerir;
– divertimento e entretenimento;
– apreciação do livro como memória e fonte de criatividade, sinónimo de espaço de tranquilidade e de sossego, antídoto para a voragem do dia-a-dia.


Os dois primeiros objectivos podem ser conseguidos através das várias formas tecnológicas a que as crianças têm acesso. O último, contudo, joga mal com as especificidades da tecnologia, já que obriga a um ritmo vagaroso e saboreado, um exercício de imaginação e de gestão tranquila do tempo, até muitas vezes nos perdermos nele. Um livro é mais do que um amontoado de páginas com letras escritas ou impressas – é uma transmissão da memória, é a consagração e consubstanciação de ideias e mensagens que alguém – o escritor – decidiu imaginar, criar, organizar, expor e partilhar com os outros. Ao contrário da leitura-informação, o objectivo principal não é acrescentar novos dados para a resolução de problemas, mas sim oferecer situações e histórias que permitam rever, confirmar, debater, mudar e discutir valores, ideias e conceitos, para além do espaço de lazer, divertimento e prazer que proporciona.


O respeito e a atenção que nos merecem são os mesmos que nos merecem as pessoas que nos contam histórias e que nos transmitem parte da sua memória, sem a qual será impossível a Humanidade sobreviver. É por isso que respeitar os livros, não os estragando ou maltratando, não dobrando páginas ou os deixando «às três pancadas» é respeitar o autor e respeitar a memória. Às vezes vejo a forma como algumas pessoas manuseiam os livros e fico a pensar que não gostaria de ser filho, pai ou familiar daquele indivíduo.

As crianças lêem? lê-se menos?


Frequentemente ouvimos queixas de que as crianças não lêem. Já de si é duvidosa esta afirmação. Mas imaginando agora que sim (coisa de que não tenho a certeza), seriam as crianças e os jovens os principais responsáveis? Os pais actuais, por exemplo, pertencerão eles a uma geração de grandes hábitos de leitura? A falta de tempo, o cansaço, a indisponibilidade a vários níveis, outras diversões e distracções que exigem menos das células cinzentas (como a televisão, a net, os videojogos), não farão com que alguns pais leiam menos livros e, daí, que as crianças também não adquiram o hábito de ler, tal a desmotivação familiar?

E o que é afinal ler?


O que é ler? E desafio o leitor (leitor, de ler…) a pensar dois minutos no assunto. Muita coisa que era transmitida em livros (informação pura e dura) é agora acessível na internet. Claro que as pessoas continuam a ler, mas lêem de um ponto de vista operacional, no ecrã, e não manuseando livros ou jornais. É uma leitura funcional, ou seja, ler serve para resolver uma situação-problema, para agir, compreender, escolher ou aprender – se formos ver que espectáculos há num determinado dia, o programa de televisão ou o quadro de partidas e chegadas numa estação de comboios, estamos a ler com essa finalidade: a de escolher ou de conformar escolhas, depois de informado. O prazer e até a estética do momento não serão de grande dimensão, convenhamos.


Ler revistas, por exemplo, pode ser apenas folheá-las e ser atraído pelas figuras e fotografias, ficando as letras para melhores dias, sacrificadas por uma gestão meramente lúdica e de passatempo da leitura. A falta de tempo crónica com que as pessoas se debatem ajuda a isso. Mas esta questão leva-nos a outra: o prazer de ler.


Há vários comentadores que vão à televisão e que, em cada semana, fornecem uma lista enormérrima de livros que dizem ter lido. Fico com dúvidas. Não que não tenham passado as suas folhas todas e até interiorizado as palavras… mas… ler? Será que isso é ler? Descodificar automática e roboticamente caracteres e símbolos é ler? É que, desculpem a ousadia, mas ler exige tempo. Mais: ler é tempo. É o tempo a fluir e nós com ele. É sermos quase deuses, ou seja, quase senhores dele. E andar para a frente e voltar para trás, nas linhas e nas entrelinhas. E brincar com as palavras, gozá-las, ouvi-las e escutá-las, com gosto e com prazer, deliciando-nos com a melodia das frases, com o significado da construção e com o assimilar das ideias e da experiência do autor – afinal, o relator das vivências que, generosamente, quer partilhar connosco. E, sugeridos pelo autor, lembrar, recordar, fantasiar, pensar... Ler (romances, poesia, relatos, biografias, história…) não pode ser feito à pressa e é quase incompatível com ler em diagonal. É por isso que penso que as tais pessoas não sabem ler!


Ler é genético? Quando vemos alguém a ler, viajando através das palavras, sentimos que esse momento tem de ter um alicerce muito antigo, porventura genético. Não se fabricam leitores, desenvolve-se num leitor a capacidade de ler.

Tanto livro...


Nunca, como até aqui, se editaram tantos livros em Portugal (quase cinquenta por dia); contudo, os preços dos livros infantis não são muito generosos e o hábito de os comprar e oferecer menor. Numa sociedade em que muitos exigem tudo à la minute, em que se usa e deita fora, os livros, como símbolo da calma, do tempo, do voltar atrás e (re)saborear certas passagens, enfrentam dificuldades. Aliás, o ritmo da criança e as características da sua imaginação fazem com que os livros sejam apetecíveis e bem recebidos. Assim os pais o considerem.


Vale a pena também sublinhar que se podem encontrar livros baratos, desde que se saiba procurar. Ainda há dias gastei muitas horas e alguns euros numa loja de um senhor que compra colecções de casas em demolição ou bibliotecas de pessoas que morrem e cujos herdeiros não querem os livros, e trouxe mais de 50 livros... a um euro cada (e ainda com a oferta de mais uns quantos pelo dono da loja). As feiras de livros


manuseados (eufemismo para designar as sobras de livros porque nunca foram manuseados por ninguém a não ser os editores), que existem em algumas paragens de metro ou na rua, têm livros infantis a preços muito baixos. E porque não habituar as crianças a trocar livros com os primos, amigos da escola ou da vizinhança?

Ler desde pequenino


O livro deve ser um elemento constante no imaginário e na vida da criança – desde os livros de pano com que brinca no banho, até aos que vê (deveria ver) nas estantes de casa. E o respeito e consideração pelo livro deve ser um dos valores veiculados pelos pais, desde a mais pequena idade.


Nos infantários e jardins-de-infância, há também muitos livros e, a partir da sua descoberta, é possível integrar a leitura nos hábitos das crianças, conferindo-lhe um contexto social e cultural. Por outro lado, a existência de bibliotecas e de troca de livros poderá ser uma solução exequível e relativamente barata, de forma a aumentar o interesse e a acessibilidade, mesmo antes de as crianças saberem descodificar o alfabeto. Nas escolas públicas, no 1º e 2º ciclo, as bibliotecas escolares têm sofrido um grande incremento e já se podem encontrar dezenas e dezenas de títulos – curiosamente, as crianças procuram a biblioteca e levam livros para casa mesmo quando os pais não os incentivam a ler. Ainda em Outubro, no Dia Internacional das Bibliotecas Escolares, na escola onde os meus filhos andam fez-se uma grande troca de livros em que as crianças traziam um livro com uma dedicatória «para quem ler este livro...», o qual ficava numa mesa, e no intervalo seguinte todos recolhiam um livro diferente. Se os pais contribuírem, as bibliotecas escolares – à semelhança das municipais e das itinerantes – podem ser um grande veículo para o mundo dos livros e da leitura.


Vou referir aqui algumas formas de interessar as crianças pelas letras, como passo inicial para o seu conhecimento, compreensão da utilidade, relação entre elas e os sons das palavras e, finalmente, percepção que é possível descodificá-las e, com elas, as palavras e as frases:
- cantar cantigas que tenham as letras, tipo lenga-lenga, quase como se de um “bê-á-bá” se tratasse;
- contar histórias em que as letras (associando sempre a palavras, como sua inicial: B de burro, M de Madalena, etc.) sejam as protagonistas;
- convidar a criança a contar histórias semelhantes, inventando elas as letras, sem demasiadas preocupações de rigor e evitando estar sempre a corrigir;
- ensinar a desenhar as letras, recorrendo a explicações fáceis: «O Q é igual ao O, mas tem uma perninha porque está cansado e tem de se apoiar, o B é um P, mas é gordo e tem uma barriga; esta aqui o que é que achas que pode vir a dar?» (por exemplo, a partir de um traço vertical), etc.;
- colocar um abecedário na parede, placard ou frigorífico, e declarar cada dia como o dia de uma letra (um pouco como as crianças fazem no Calendário de Chocolates do Advento) – hoje é o C – a história será sobre cães, as canções também, e aproveita-se para treinar a relação entre o C e o seu significado;
- como a criança sabe, geralmente, o seu nome, arranje as letras e depois baralhe-as. Deixe ser ela a recompor o nome. Depois passará a exercícios cada vez mais difíceis;
- mais do que comprar livros com alfabetos, sugiro que os pais os façam com as crianças, desenhando, recortando de revistas e jornais, deixando espaço para a imaginação e em trabalho de equipa;
- além das massas de letras, que entusiasmam a criança («Agora come todos os Ts, agora os As»), pode desenhar letras com a própria comida.


Escrever para ler


Além de estimular a leitura, controlar os hábitos televisivos e dar o exemplo, lendo, convém os pais desenvolverem nas crianças a capacidade e o talento de escrever. Escrever e ler andam a par. Tal deve acontecer antes de ser a própria criança capaz de descodificar as letras e as sílabas, ou de ser ela a colocar no papel os símbolos que outros descodificarão. Ao lermos e ao escrevermos em círculo vicioso, o vocabulário aumenta, a gramática melhora, a construção de frases torna-se mais fluida e mais coerente e uma coisa leva imediatamente à outra. Há pois que estimular nas crianças a tendência natural, tão própria do ser humano, para relatar e contar – diários, poemas, histórias, impressões de viagens, etc. E os educadores podem estimular nas crianças a elaboração de jornais de parede ou de escola, redacções, concursos de contos. Os próprios meios de comunicação escrita terão de ser mais ousados na promoção do ler e do escrever.

A terminar…


Não há soluções mágicas. Os hábitos culturais, para se sedimentarem, sobretudo quando vão contra algum facilitismo do sistema, exigem esforço e tempo. Não se compram no hipermercado nem na farmácia. Talvez seja esse o obstáculo, mas não deverá ser motivo suficiente para cruzarmos os braços. Hoje mesmo comprem um livro e ofereçam-no aos vossos filhos.


Ligação entre textos e a vida real


A leitura de livros e a apresentação de autores não podem ser desgarradas. Quando se fala de Fernando Pessoa, há que fazer a ligação entre aquele senhor que está sentado à saída do metro do Chiado, com o que escreveu O Mostrengo, depois de o termos lido aos nossos filhos, e estar pronto para responder à pergunta (e aproveitá-la para continuar): «O mostrengo era mau?» E daí ao Tejo, «que é maior mas menos importante do que o rio que passa na minha aldeia», e tanta coisa mais.


As crianças lêem antes de ler, ou seja, antes de descodificar as letras. Lêem e escrevem. Imaginam, fantasiam. Que tal ouvi-las e reproduzir, em escrita, as histórias que inventam, individualmente ou em grupo? São exercícios que, complementados com pesquisa em casa, podem em muito estimular o gosto pelos livros e pela leitura, nesta idade «analfabeta».


Mas os pais têm de ser os primeiros a interessar -se pelo assunto e lerem, eles próprios...


PS: em assuntos tão delicados – e porque não gosto de dar conselhos paternalistas –, deixo aqui aquela mensagem que costuma vir no terceiro aviso da conta da electricidade que nos esquecemos de pagar: «Se por acaso já regularizou a sua situação, queira, por favor, ignorar este aviso...»

Exemplos de leituras

Exemplo de um projecto pedagógico sobre o Livro e a Leitura para crianças de quatro-cinco anos:
- A educadora recorre à leitura de um livro, para o lançamento do projecto;
- o grupo faz uma sopa de letras, descobrindo em conjunto as diferentes letras, e questionando-se sobre a importância das mesmas;
- procuram-se, em revistas e jornais, as letras, palavras e textos;
- inicia-se um trabalho: “Também sabemos ler… imagens”, em que a criança faz uma descrição (que é registada) de imagens apresentadas pela educadora, apercebendo-se de que sabe ler, mas de uma forma diferente;
- visita-se uma biblioteca;
- ouvem-se e contam-se histórias;
- momento de texto livre;
- utilização do ficheiro de letras;
- utilização do ficheiro de imagens;
- conta-se uma história através de slides, e à medida que o grupo observa, conta e encontra uma sequência lógica para as imagens que vão passando;
- com o que as crianças dizem e desenham, constrói-se um livro em conjunto, com capa e tudo.
Estas são algumas actividades que explicam porque é que os nossos filhos gostam tanto das educadoras e do jardim-de-infância. E se sentirem uma leve inveja de eles terem um dia tão bom e tão rico, e um ligeiro ciúme de estarem tão bem com outras pessoas, têm bom remédio.
Mimem-nos e procurem aumentar a quantidade e a qualidade de tempo que lhes dão. Mas não se preocupem. Pais são pais e as crianças sabem bem separar os mundos.
 
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