• Olá Visitante, se gosta do forum e pretende contribuir com um donativo para auxiliar nos encargos financeiros inerentes ao alojamento desta plataforma, pode encontrar mais informações sobre os várias formas disponíveis para o fazer no seguinte tópico: leia mais... O seu contributo é importante! Obrigado.

O hospital que navegou para os homens do bacalhau

kokas

GF Ouro
Entrou
Set 27, 2006
Mensagens
40,723
Gostos Recebidos
3


ng4593787.jpg


A enfermaria do Gil Eanes tem mobiliário da época e estão ali expostas fotografias de cirurgias feitas a bordo Fotografia © Rui Manuel Fonseca/Global Imagens
Era conhecido como o anjo branco entre os pescadores dos bacalhoeiros por ser o navio-hospital que prestava apoio à frota portuguesa. O Gil Eannes esteve quase a ir para a sucata mas o orgulho de Viana do Castelo resgatou-o. Recuperado desde 1998, é um museu onde se descobre um barco que em 1955 era topo de gama.
Durante duas décadas, o Gil Eannes foi o anjo branco da frota bacalhoeira portuguesa. Era assim conhecido entre os pescadores o navio-hospital que se distinguiu na história naval portuguesa nas campanhas de pesca nos mares do Norte. Repousa hoje, como museu, em Viana do Castelo, terra onde nasceu em 1955 como exemplo da inovação da construção naval vianense. À época até foi reconhecido como sendo uma unidade de saúde mais bem equipada do que a existente em terra na cidade minhota.
O objetivo principal deste navio de 95 metros era prestar assistência médica aos pescadores da frota que laborava na Gronelândia e na Costa Nova. O Gil Eannes e sua equipa médica "proporcionavam por época de pesca 1500 consultas e ficavam internados a bordo cerca de 400 doentes acidentados", como escreveu Gonçalo Fagundes Meira no texto "O embaixador dos oceanos", inserido no livro Gil Eannes, Uma História com Futuro.
São informações históricas que também pode encontrar o visitante do agora Museu Gil Eannes, ancorado na doca de Viana de Castelo, seja em documentos ou nas dezenas de fotografias que hoje estão expostas no interior do navio. Ali, faziam-se "mais 200 de extrações dentárias e 70 intervenções de grande cirurgia", por cada campanha entre abril e outubro. Além de hospital, era também navio-capitania, com capitão-de-mar-e-guerra, e tinha ainda "funções de rebocador, abastecimento de mantimentos e de correio, quebra-gelos e até de assistência religiosa", lembra Amadeu Costa, um professor reformado de Viana do Castelo que durante sete anos, na década de 1960, foi ajudante de máquinas em bacalhoeiros. Chegou a ser centro de detenção: "Quando houvesse qualquer questão, ela era resolvida a bordo do Gil Eannes."
ng4593823.jpg
O navio-hospital está ancorado em Viana do Castelo e no seu interior está o Centro do Mar Fotografia © Rui Manuel Fonseca/Global Imagens
Além do apoio à frota portuguesa, em "que todos os cuidados eram gratuitos", o Gil Eannes oferecia os seus serviços a embarcações de qualquer nacionalidade. Em St. Johns, na Terra Nova, o barco português tinha um tratamento de exceção, dado o seu carácter utilitário e humanitário. Todos o conheciam.
Viana do Castelo e os seus estaleiros têm uma ligação forte ao Gil Eannes e à pesca de longo curso. A sua construção, iniciada em 1952, só foi concluída em 1955. Nasceu para substituir o anterior Gil Eanes, o Lahneck, um barco alemão aprisionado por Portugal em 1916 no auge da Primeira Guerra Mundial, que serviu de navio de apoio aos bacalhoeiros durante quase 40 anos. Foi o Grémio dos Armadores da Pesca de Bacalhau que decidiu criar um navio moderno e capaz de dar resposta adequada às difíceis condições dos mares do Norte, onde o bacalhau abundava.
"A população vianense tinha grande ligação afetiva ao navio. Muito grande mesmo. Por um lado, foi construído aqui e, por outro, deu apoio a muitos pescadores que eram de Viana. Toda a gente aqui conhecia o Gil Eannes. Na época havia a Empresa de Pesca de Viana, com muita tradição na pesca do bacalhau", recorda Amadeu Costa, 74 anos, durante a visita guiada que fez com o DN.
Por isso, em 1997, quando se conheceu a notícia de que o Gil Eannes ia ser desmantelado numa sucata, gerou-se um movimento vianense. "As pessoas e as instituições de Viana reagiram com muita vontade de não deixar morrer um símbolo da cidade", lembra Diogo Moreira, administrador da Fundação Gil Eannes, constituída para salvar o barco, com a câmara municipal à cabeça dos esforços. Foi conseguido, com 50 mil contos a serem garantidos na época. Em 1998 estava já em Viana e aberto ao público.
ng4593830.jpg
A sala das máquinas está aberta aos visitantes e foi alvo de grande trabalho de recuperação Fotografia © Rui Manuel Fonseca/Global Imagens
Décadas antes, a bordo seguia uma tripulação de 72 pessoas e tinha lugar para mais 74. Passavam seis meses na campanha e depois regressavam a Portugal. "O navio também fazia viagens de comércio quando não estava com os bacalhoeiros. E já quando não estava em atividade na pesca, em 1975, esteve em Angola a dar apoio aos portugueses na altura da independência", diz Amadeu Costa.
A viagem ao interior do Gil Eannes é uma descoberta. Numa manhã de agosto, estavam dezenas de visitantes, com muitas crianças curiosas com toda a maquinaria e instrumentos marítimos. As escolas são, ao longo do ano, visitas frequentes. Por ano, são 50 mil visitas, com a perspetiva de aumentar. "Cerca de 50% são estrangeiros, muitos da Galiza", aponta Diogo Moreira, administrador da fundação em representação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, uma das muitas instituições que se associaram à preservação do ícone marítimo.
Para percorrer todos os setores do navio e viajar pela sua história, paga-se um bilhete de 3,5 euros. "É o que garante o orçamento. Temos cinco funcionários e é necessária receita. É importante que as pessoas também contribuam."
Há quem "ofereça donativos mesmo sem ter ligação anterior ao navio", acrescenta Amadeu Costa, entusiasmado quando fala das características da embarcação. "Gil Eannes foi um salto muito grande em termos de tecnologia. Era topo de gama", diz enquanto mostra a casa das máquinas, local igual a outros onde trabalhou. "Foi o primeiro barco português a ter ar condicionado e até tinha um elevador para o transporte de doentes."
Nas máquinas, vemos dois motores propulsores de 1400 cavalos cada e cinco geradores elétricos. Está tudo em bom estado de conservação. Sobe-se ao camarote central, o "cérebro do navio". Na sala de navegação estão à vista muitos mapas. "Muita gente vem trazer coisas como mapas, cartas, fotografias e livros náuticos. São familiares de médicos, tripulantes que passaram pelo Gil Eannes", explica Diogo Moreira.
Na ponte a concentração de visitantes é geralmente grande. "É a joia para as fotografias, toda a gente quer ir para o leme, aquela roda atrai muito", graceja Amadeu Costa. Segue-se pela padaria, barbearia, cozinha e capela. A enfermaria serve hoje para exposições temporárias. Ao lado é o espaço de radiologia. A sala de cirurgias é das mais interessantes. Fica no ponto mais central e mais baixo do navio, de forma a que fosse minimizada a ondulação para que as delicadas operações médicas decorressem sem sobressaltos. "Foram salvas aqui muitas vidas", diz Amadeu Costa. O salão de jantar e jogos é um hoje um pequeno auditório onde passam filmes documentais. "O historiador José Hermano Saraiva foi um grande defensor do Gil Eannes e ajudou muito na altura da sua recuperação", diz Amadeu Costa. Aliás, o navio é com frequência requisitado para filmagens. Os filmes Assalto ao Santa Maria e O Cônsul de Bordéus, sobre Aristides de Sousa Mendes, tiveram cenas ali rodadas. Outra atração é o Centro do Mar, espaço criado em 2014 no âmbito da aposta da autarquia em elevar Viana do Castelo a local de referência marítima.
ng4593812.jpg
Cerca de metade dos 50 mil visitantes anuais são estrangeiros, como é exemplo a família Lindsay, de Birmingham, Inglaterra Fotografia © Rui Manuel Fonseca/Global Imagens
Os turistas gostam. Sebastian e Nicole, um casal de austríacos que percorre Portugal em férias, sorriem e garantem que o navio é "muito interessante pelo facto de ter sido um hospital, ter muitas fotografias do passado". O mesmo diz o inglês Hamish Lindsay, de Birmingham, que tem casa em Caminha e levou a mulher e os filhos ao Gil Eannes. "No ano passado, quando cá vim, não estava aberto. É importante para os miúdos conhecerem um barco destes."
Sete anos de serviço militar nas máquinas de bacalhoeiros
Amadeu Costa, 74 anos, professor reformado que passou sete anos como ajudante de máquinas em bacalhoeiros portugueses, é sincero na avaliação: "Trabalhei na melhor parte dos barcos. Os pescadores tinham uma vida miserável e quase desumana."
A bordo do agora Museu Gil Eannes, o vianense que desde 2008 é voluntário na Fundação Gil Eannes, para apoiar nas visitas, relata episódios da sua passagem pela frota pesqueira de longo curso e admite ter passado ao lado de muitas das agruras das campanhas na Terra Nova e Gronelândia. Estará aí a possível explicação para nunca em sete anos ter entrado na enfermaria do Gil Eannes como doente ou acidentado.
ng4593849.jpg
"Pescadores tinham uma vida quase desumana", diz Amadeu Costa, antigo ajudante nas máquinas de bacalhoeiros Fotografia © Rui Manuel Fonseca/Global Imagens
"Andei nos bacalhoeiros na década de 1960. Não foi uma escolha fácil. Fiz a tropa na pesca do bacalhau", recorda. A pesca era tão importante a meio do século XX que "o Estado autorizava que os jovens pudessem escolher entre o serviço militar normal e serem integrados na pesca do bacalhau." Havia uma desvantagem: "Eram sete anos em vez dos três e tal normais."
Amadeu até se tinha oferecido como voluntário para a Força Aérea. "Naquela altura, por convicção, pensava como muitos - Angola é nossa. Mas depois, em Lisboa, tive contactos com outras gentes e percebi que não fazia sentido." E tomou medidas para evitar ir combater para as colónias. "Como a pesca já estava na na minha família, pensei que podia ir para a pesca do bacalhau. E fui. Andei sete anos e vi como era duro, muito duro."
Ao longo das campanhas em que tomou parte, sempre como ajudante na casa das máquinas, trabalhou em vários barcos, como o Senhor das Candeias, o Senhor dos Mareantes e o São Ruy. As embarcações seguiam para dois tipos de pesca, a do arrasto e a pesca à linha. Esta última "era duríssima, era uma atividade quase desumana. Repito, não havia comparação nas máquinas, era uma vida muito melhor."
A vida diária de um pescador à linha era áspera, cheia de perigos. "Eles acordavam às quatro da madrugada . Quando se levantavam ouvia-se logo "louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo". Iam no Dóris (pequeno barco para um homem só), com arpão para pescar bacalhau. Estavam na água até às três da tarde, sempre em pé e muitas vezes a tirar a água que entrava para o barco."
Depois, regressavam para o navio. "Tinham de lançar o bacalhau para o convés com forquilhas. Era tão alto que até precisavam de esperar pelas ondas para conseguirem colocá-los no convés."
Nas máquinas era tudo diferente. Até na comida. "A alimentação era muito má. Os pescadores comiam sobretudo grão, feijão e peixe. Havia fome e muitas doenças." Existia claramente "uma divisão entre o pessoal, o da proa eram os pescadores e os da ré a tripulação", aponta Amadeu Costa, quando vê uma foto em que se vê os pescadores, que dormiam praticamente uns em cima dos outros. O Gil Eannes, nas suas campanhas, procurava muitos pescadores. Perdiam-se e, por vezes, andavam dias à deriva.
Quem prestou assistência a muitos pescadores foi Bernardo Santareno, não esquece Amadeu Costa.
O dramaturgo foi médico a bordo do Gil Eannes em 1957 e 1958. Escreveu depois três obras a relatar a vida nos bacalhoeiros.



dn
 
Topo