santos2206
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Por que violou Portugal a sua obrigação de proteger pela lei o direito à vida de um seu cidadão?
Portugal, no final do ano passado, foi mais uma vez condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). Desta vez, não por ter violado o direito à justiça em prazo razoável, a liberdade de expressão ou a propriedade mas por violação do nosso direito à vida.
O caso Lopes de Sousa Fernandes contra Portugal é simples: a Joana, na queixa apresentada em Estrasburgo, referia que o seu marido tinha morrido em consequência de uma infecção contraída num hospital público que não tinha sido devidamente diagnosticada e tratada. Mais referia que recorrera a todas as instituições possíveis mas que não conseguira ver devidamente explicada a morte do seu marido nem conseguira que alguém fosse responsabilizado. A Inspecção-Geral de Saúde, sete anos e meio após a abertura do inquérito, suspendeu o andamento do mesmo à espera da solução que fosse dada ao processo que corria nos tribunais criminais. Processo-crime esse que durou seis anos e oito meses. Por seu lado, o processo que em 6 de Março de 2003 começou a correr nos tribunais administrativos para obter uma indemnização veio a findar quase dez anos depois sem que tenha sido encontrado qualquer responsável para a morte do seu marido. O mesmo aconteceu nos restantes processos.
Para Joana, Portugal tinha violado o artigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que assegura que “o direito de qualquer pessoa a` vida e´ protegido pela lei”. E o TEDH, em 2015, assim o reconheceu ao mesmo tempo que condenou o nosso país a entregar à Joana uma indemnização no valor de 39 mil euros. Recorreu o Estado português para a Grande Câmara do TEDH e foi este órgão com 17 juízes que, no passado dia 19 de Dezembro, confirmou a condenação de Portugal, embora reduzindo a indemnização para 23 mil euros.
E por que violou Portugal a sua obrigação de proteger pela lei o direito à vida de um seu cidadão? Não porque se tenha apurado ter havido um ou mais médicos negligentes ou pouco cuidadosos, já que o TEDH não cuida desse aspecto. O que ao TEDH cabia apurar era se o Estado, neste caso Portugal, tinha um regime legal que assegurava a protecção efectiva do direito à vida e se esse regime tinha sido violado. E aquilo que o TEDH concluiu foi que, embora o nosso sistema legal assegurasse, em abstracto, a protecção do direito à vida, no caso do marido da Joana, as disfunções do sistema tais como a má comunicação entre os diversos departamentos hospitalares ou a excessiva lentidão de todos os processos intentados pela Joana tinham desprotegido processualmente esse direito para além do que era aceitável.
A decisão da Grande Câmara do TEDH tem uma importante declaração de voto, em parte concordante e em parte discordante, do juiz português no TEDH. Nessa declaração, Paulo Pinto de Albuquerque discorda da maioria dos juízes, na medida em que entende que o TEDH devia ter ido mais longe e considerado que o direito à protecção da vida tinha sido violado não só processualmente mas também substancialmente, dado que as estruturas hospitalares envolvidas no caso do marido da Joana, pela falta de material e pessoal, não podiam objectivamente responder às necessidades dos doentes em necessidade absoluta de ter apoio de saúde.
Para Paulo Pinto de Albuquerque, “na Europa, houve tempo em que a lei não entrava nas prisões ou nos quartéis do exército, quando os guardas e os oficiais eram deuses intocáveis, enquanto os prisioneiros e os soldados eram sujeitos insignificantes. Esse tempo já passou há muito para as prisões e para os quartéis do exército. Infelizmente, ainda não terminou para os hospitais”. E acrescentou, lamentando-o: “No entender da maioria [dos juízes], a Convenção Europeia dos Direitos Humanos deveria ficar na porta do hospital.” Para o juiz português, o TEDH tem de ser um activo protector dos direitos humanos, não podendo ter um lugar residual na defesa de tais direitos e valores. Uma posição que está em contracorrente com um sector mais conservador/estatista de juízes do TEDH que pretende reduzir o grau de intervenção deste tribunal alargando, desta forma, os poderes não supervisionados dos Estados.
O papel do TEDH na Europa e em cada um dos países membros da Convenção está, assim, sempre em aberto e ligado às tensões políticas e culturais, populistas e autoritárias, federalistas e isolacionistas que se vivem na Europa.
Colunista
Francisco Mota
Jornal Publico
Portugal, no final do ano passado, foi mais uma vez condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). Desta vez, não por ter violado o direito à justiça em prazo razoável, a liberdade de expressão ou a propriedade mas por violação do nosso direito à vida.
O caso Lopes de Sousa Fernandes contra Portugal é simples: a Joana, na queixa apresentada em Estrasburgo, referia que o seu marido tinha morrido em consequência de uma infecção contraída num hospital público que não tinha sido devidamente diagnosticada e tratada. Mais referia que recorrera a todas as instituições possíveis mas que não conseguira ver devidamente explicada a morte do seu marido nem conseguira que alguém fosse responsabilizado. A Inspecção-Geral de Saúde, sete anos e meio após a abertura do inquérito, suspendeu o andamento do mesmo à espera da solução que fosse dada ao processo que corria nos tribunais criminais. Processo-crime esse que durou seis anos e oito meses. Por seu lado, o processo que em 6 de Março de 2003 começou a correr nos tribunais administrativos para obter uma indemnização veio a findar quase dez anos depois sem que tenha sido encontrado qualquer responsável para a morte do seu marido. O mesmo aconteceu nos restantes processos.
Para Joana, Portugal tinha violado o artigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que assegura que “o direito de qualquer pessoa a` vida e´ protegido pela lei”. E o TEDH, em 2015, assim o reconheceu ao mesmo tempo que condenou o nosso país a entregar à Joana uma indemnização no valor de 39 mil euros. Recorreu o Estado português para a Grande Câmara do TEDH e foi este órgão com 17 juízes que, no passado dia 19 de Dezembro, confirmou a condenação de Portugal, embora reduzindo a indemnização para 23 mil euros.
E por que violou Portugal a sua obrigação de proteger pela lei o direito à vida de um seu cidadão? Não porque se tenha apurado ter havido um ou mais médicos negligentes ou pouco cuidadosos, já que o TEDH não cuida desse aspecto. O que ao TEDH cabia apurar era se o Estado, neste caso Portugal, tinha um regime legal que assegurava a protecção efectiva do direito à vida e se esse regime tinha sido violado. E aquilo que o TEDH concluiu foi que, embora o nosso sistema legal assegurasse, em abstracto, a protecção do direito à vida, no caso do marido da Joana, as disfunções do sistema tais como a má comunicação entre os diversos departamentos hospitalares ou a excessiva lentidão de todos os processos intentados pela Joana tinham desprotegido processualmente esse direito para além do que era aceitável.
A decisão da Grande Câmara do TEDH tem uma importante declaração de voto, em parte concordante e em parte discordante, do juiz português no TEDH. Nessa declaração, Paulo Pinto de Albuquerque discorda da maioria dos juízes, na medida em que entende que o TEDH devia ter ido mais longe e considerado que o direito à protecção da vida tinha sido violado não só processualmente mas também substancialmente, dado que as estruturas hospitalares envolvidas no caso do marido da Joana, pela falta de material e pessoal, não podiam objectivamente responder às necessidades dos doentes em necessidade absoluta de ter apoio de saúde.
Para Paulo Pinto de Albuquerque, “na Europa, houve tempo em que a lei não entrava nas prisões ou nos quartéis do exército, quando os guardas e os oficiais eram deuses intocáveis, enquanto os prisioneiros e os soldados eram sujeitos insignificantes. Esse tempo já passou há muito para as prisões e para os quartéis do exército. Infelizmente, ainda não terminou para os hospitais”. E acrescentou, lamentando-o: “No entender da maioria [dos juízes], a Convenção Europeia dos Direitos Humanos deveria ficar na porta do hospital.” Para o juiz português, o TEDH tem de ser um activo protector dos direitos humanos, não podendo ter um lugar residual na defesa de tais direitos e valores. Uma posição que está em contracorrente com um sector mais conservador/estatista de juízes do TEDH que pretende reduzir o grau de intervenção deste tribunal alargando, desta forma, os poderes não supervisionados dos Estados.
O papel do TEDH na Europa e em cada um dos países membros da Convenção está, assim, sempre em aberto e ligado às tensões políticas e culturais, populistas e autoritárias, federalistas e isolacionistas que se vivem na Europa.
Colunista
Francisco Mota
Jornal Publico