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Dois Amigos

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Amigos, temos poucos na nossa vida. Temos os conhecidos do trabalho, os vizinhos, aqueles com quem nos cruzamos, mas amigos, amigos verdadeiros, temos muito poucos...Amigos, passe o lugar comum, são quem nos acompanha no bem e no mal, na saúde e na doença. Amigos, sabe certamente o leitor, são aqueles que estão connosco para lá da distância, da solidão e do medo que muita vezes nos assombra o coração...

Uma das mais tristes realidades do nosso mundo e, particularmente, da nossa civilização ocidental é a solidão a que muitos dos nossos concidadãos são votados, no entardecer da vida. Poucos são os que conseguem manter até ao final uma presença satisfatória junto da família, contando histórias do “seu tempo”, já esquecido de todos, mesmo dos seus próprios filhos e parentes mais próximos.


A maioria é despejada em antecâmaras da morte a que, eufemisticamente, chamamos “asilos”, se temos pouco dinheiro, ou “casas de repouso”, se somos endinheirados, ou se pura e simplesmente pretendemos fazer um tratamento cosmético à nossa consciência...

De vez em quando ouvem-se histórias, mais ou menos tétricas, de maus tratos a idosos. Durante alguns dias vão rever-se leis, vão castigar-se culpados, vão criar-se centros de apoio. Contudo, como é comum neste nosso país, de tantas e tão vazias leis e regulamentações, tudo volta ao que era...Além do mais, julgam muitos, a velhice, como tudo o que é mau na nossa vida, não é assunto para valorizar muito, para discutir...é uma época triste e feia. Parece adequado, para muitos, deixar “os velhinhos” nos corredores tristes dessas lucrativas casas. Afinal nada se pode fazer...é a vida, dirão outros...

Mais do que a doença, é o abandono e a solidão a que os idosos estão sujeitos, que me impressiona. Um sinal disto mesmo é a pressão dos familiares, nas épocas festivas ou de férias, para o internamento dos seus idosos, por situações tratáveis em casa. Um exemplo, foi o de um velho oficial, chegado à Urgência do Hospital, pela mão de dois dos seus três filhos.

Hipertenso desde longa data este oficial era, há muito, meu conhecido. Tinha sofrido um acidente vascular cerebral, que lhe granjeou alguma limitação da marcha. Desde o falecimento da esposa, vivia saltitando entre as casas dos filhos. Estes, profissionais liberais de grande sucesso, dividiam o tempo de acolhimento do velho oficial de uma forma matemática, fria...

O doente estava desidratado. Tinha um ar apático e desinteressado, distinto do seu modo alegre habitual. Aconselhei o reforço hídrico, em casa. Os filhos imediatamente retorquiram que ia ser difícil, que não estaria ninguém disponível para o ajudar...Triste, internei o doente...

Nos dias seguintes melhorou fisicamente, mas mantinha o mesmo ar ausente – que apresentam muitos os que da sua idade, se sentem pouco mais que um fardo, dispensável...Parecia, como em muitos outros casos, que o Sr. Comandante ia entrar na espiral descendente em que depressão arrasta agravamento da doença física e esta agrava a depressão, até um final triste e solitário.

Foi então que, vindo não sei de onde, surgiu o Amigo – tratava-se de um outro oficial da mesma idade que o meu doente. Eram do mesmo curso da Escola Naval. Partilharam muitos embarques. Fizeram comissões em África e, certamente, haviam partilhado emoções profundas, que eu, mero espectador, não podia perceber...

O recém chegado tratava o meu paciente com um grande carinho. Chamava-lhe Lourinho, a alcunha que lhe ficara da Escola Naval, nome que provocava sorrisos mais ou menos condescendentes, nos que os ouviam, dada o tom contrastante entre a jovial alcunha e a idade actual do Lourinho. Nada disto importava ao Amigo, que, daí em diante passou horas infinitas naquele quarto, falando de aventuras passadas e, compreendendo a profunda tristeza a que o Lourinho havia chegado, ia organizando aventuras futuras - como se tudo fosse possível e o mundo não tivesse tempo...

Sendo eu um muito mau católico, aqui confesso que, nessa época, quase acreditei na existência de anjos. Que esses anjos habitam a Terra e que tomam muitas formas. Não interessa contudo o que pensei, o que era importante era a força da amizade entre aqueles dois amigos e a bondade evidenciada pelo Amigo. A harmonia de tal relação obrigava-nos, a todos, a estar de bem com a vida...

Penso (e estou quase certo), que a vida de Marinha muito ajuda no forjar de tais amizades. Internatos, embarques prolongados, perigos e sofrimentos partilhados são situações que ajudam a cimentar amizades. Até eu, em circunstâncias semelhantes, já fiz amigos assim, capazes de ajudar nos piores momentos, desinteressadamente...

Esta história acabou bem. O Comandante Lourinho sobreviveu graças ao Comandante Amigo. Nenhum dos dois voltará a comandar qualquer navio, mas provaram de modo singelo que todas as tempestades podem ser domadas por uma forte amizade...Continuo a ver o Lourinho de tempos a tempos. Ainda mora em alternância na casa dos filhos. Mas já se não preocupa com isso...Pelo menos uma vez por semana, o Amigo visita-o. Saem juntos. Vão almoçar à messe.

O Lourinho nunca mais foi internado, nem se apresenta triste nas consultas...Já se não acha “velho”, indesejado...

E eu muitas vezes recordo as imagens das tardes de Verão, em que dois velhos riam felizes de si próprios num quarto, abafado, do Hospital da Marinha. Nesses dias não compreendia nada, nem a força de tal amizade, nem a alegria que eu próprio sentia ao observá-los...Essas memórias apagam, também em mim, a tristeza, o medo e o descrédito, que muitas vezes me afligem...É que, com estes dois amigos percebi, não há nada que a amizade não vença...

Ora se nos nossos dias se inauguram estátuas a este ou aquele, que por mérito próprio se destacou, em praças, ruas e até em viadutos, não podia eu deixar aqui de falar no monumento que ergueram a si próprios e a todos os que o observaram, aqueles dois homens. São estes monumentos, quase sempre incógnitos, mas consistentes e duradouros, que melhor definem a palavra “Humanidade”.

Que vivam os dois muitos anos mais....


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é a mais pura realidade! :espi28:
 
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