'Inferno da Luz' Uma Luz que se apagou
Quando as novas gerações de adeptos do Benfica ouvem falar do ‘Inferno da Luz’ devem sentir dificuldade em imaginá-lo. O prestígio do recinto inexpugnável, na realidade construído exclusivamente por equipas de grande capacidade e força, assentava sobre sequências enormes de vitórias ao longo das temporadas, que se tornou impossível repetir a partir de meados dos anos 90, mais exactamente a presidência de Manuel Damásio e a passagem de Artur Jorge pelo lugar de treinador.
De facto, desde 1994, o Benfica sofreu em casa 23 derrotas, tantas quantas as registadas nos 50 anos anteriores. É uma transformação radical, para pior, que acentua a perda de influência social do emblema encarnado, entre as gerações mais jovens, com o mítico recinto a incutir cada vez menos respeito aos visitantes, nestes anos em que o marketing inventou o chamado ‘voo da águia’ a anteceder cada jogo – que se tornou até na única Vitória que os benfiquistas conseguem aplaudir na maioria das idas à Luz.
Neste ano, com José Antonio Camacho, o Benfica venceu menos de metade dos jogos, regressando à tendência do século XXI em que só uma vez, no ano do título com Trapattoni, conseguiu ultrapassar as 11 vitórias em casa. No ano passado, com um registo de 11-4-0, Fernando Santos conseguira a proeza rara de acabar o ano sem qualquer derrota caseira, o que já não acontecia desde o campeonato de 1994, ganho por Toni, com um recorde semelhante de 13-4-0.
O factor-casa é normalmente decisivo para a conquista de títulos e destaca-se como uma imagem de marca do FC Porto das últimas décadas. O Estádio das Antas também foi sempre um recinto muito complicado para os visitantes, com um recorde de mais de sete anos consecutivos sem qualquer derrota (de 82 a 89), que acabou por conferir-lhe um prestígio que ainda perdura nos nossos dias. Depois de um ano atípico em 1995, com cinco derrotas, o novo Dragão vem recuperando a sua imagem de bastião do Norte, com realce para a sequência de resultados desta temporada, em que apenas o Belenenses conseguiu não perder.
A grande diferença entre FC Porto e Benfica reside precisamente no número de pontos perdidos em casa e na fiabilidade das respectivas equipas, que se mede em primeiro lugar pela capacidade de garantir o essencial, as vitórias, à frente dos espectáculos e das grandes noites. O público do Dragão pode assobiar Quaresma ou Lucho mas fá-lo de barriga cheia, gozando a tranquilidade de uma sequência de triunfos quase sem defeito.
As dificuldades evidentes do Benfica dos nossos dias trouxeram à baila uma justificação insólita de Camacho, para quem a pressão do próprio estádio se teria tornado insuportável. Uma declaração mais do que insólita, até qualquer português sabe que o Benfica, exceptuando no Dragão e em Alvalade, actua sempre perante um público maioritário e pressionante.
Uma equipa que não consegue responder a essa pressão básica não está à altura das tradições do clube e não deixa grande margem para dar a volta à situação. Camacho e a sua equipa passam à História como dos mais frágeis, necessitando agora de operar uma absoluta transformação para escapar ao recorde negativo. Desde 1972, quando o campeonato passou a ter pelo menos 16 equipas, só uma vez o Benfica não chegou a pelo menos 10 vitórias em casa, mas esse triste recorde está seriamente em risco de ser igualado ou batido neste ano. Para fazer melhor que as nove vitórias da equipa de Autuori e Manuel José, em 1996/97, a de Camacho teria de ganhar as seis partidas que ainda lhe restam na Luz, o que se afigura altamente improvável considerando os antecedentes.
É um facto que o ‘Inferno da Luz’ já não existe, extinguiu-se. A televisão, os jogos à noite, o acomodamento do público e, sobretudo, a demolição do Terceiro Anel apagaram lentamente essa ‘chama imensa’ que aterrorizou adversários nacionais e europeus décadas a fio.
A MARCA DE JIMMY HAGAN
Por causa do modo controverso como saiu do Benfica, em conflito com a direcção que o desautorizou e com uma relação desgastada com os jogadores, o inglês Jimmy Hagan nem sempre recebeu o reconhecimento devido. Uma das suas proezas foi a sequência esmagadora de invencibilidade no Estádio da Luz, cedendo apenas três empates em três temporadas, com uma sequência de 21 vitórias consecutivas que, aliás, ainda estava a correr quando decidiu deixar o clube, no Outono de 1973, e que Fernando Cabrita ainda conseguiu prolongar por mais seis jornadas.
Tal como Hagan, também o seu compatriota John Mortimore geriu uma equipa invencível em casa ao longo de três temporadas, entre 1977 e 1979, vindo a sofrer apenas uma derrota durante a segunda passagem pelo clube, já nos anos 80, apresentando um fantástico registo de 64 vitórias em 75 jogos na Luz.
Outro treinador invencível foi o húngaro Lajos Baroti, bicampeão no início dos anos 80, conseguiu não perder qualquer partida da Liga, cedendo apenas dois empates em 30 jornadas. O técnico que lhe sucedeu, Sven-Goran Eriksson, manteve o andamento, com quatro empates em dois anos, o que contribuiu decisivamente para o registo de invencibilidade caseira que ainda hoje perdura, de 78 jogos consecutivos sem derrotas em casa, mesmo assim muito aquém do recorde do FC Porto, de 119 jogos.
Tal como Mortimore, Eriksson veio a perder em casa pela primeira vez apenas no seu quinto e último ano no clube, num jogo com o Boavista. Algo de idêntico marca a carreira de Toni, que esteve no cargo em três fases diferentes, empatando muitas vezes mas vindo a ser batido pela primeira vez somente na derradeira experiência, quando sucedeu ao alemão Heynckes, na fase decadente da velha Luz, pouco antes da traumatizante demolição.
JOGOS E DERROTAS
Hagan 44 0
Baroti 30 0
Mortimore 75 1
Eriksson 83 2
Toni 81 2
Guttmann 51 2
Otto Glória 65 3
Biri 78 4
Camacho 37 5
GLÓRIA DE FERNANDO SANTOS
Em 15 anos, Fernando Santos foi o único treinador do Benfica a acabar uma temporada sem ser derrotado em casa. Era a sua especialidade. Em cinco épocas ao serviço dos três grandes, regista 75 vitórias e apenas duas derrotas, em 86 partidas – notável para quem é tão contestado.
SAUDADES DOS DOMINGOS À TARDE
Com luz natural, a Luz era o verdadeiro inferno. A perda de ‘autoridade’ do estádio coincide com uma significativa alteração de hábitos – o fim dos jogos ao domingo à tarde e a transformação cénica da iluminação artificial, por causa da ditadura da TV.
ANTAS E DRAGÃO A MESMA TRADIÇÃO
O Dragão recompôs-se da época de Fernandez e Couceiro e está à altura da tradição das Antas. Será, porém, difícil bater o recorde de 119 jogos consecutivos (109 vitórias, 10 empates) de invencibilidade, interrompida em 1989 por um golo que celebrizou Aparício, V. Setúbal.
A ORDEM DOS NOVOS ESTÁDIOS
Os estádios do Euro’2004 estabeleceram uma nova ordem de ‘poder’: o Estádio do Dragão é hoje, destacadamente, o recinto mais difícil para os adversários, com uma percentagem de 75 % de vitórias, contra 72 % do Sporting no Alvalade XXI e de apenas 65 % do Benfica na nova Luz.
DRAGÃO: 75 % - 67 jogos/50 vitórias
ALVALADE XXI: 72 % - 74 jogos/53 vitórias
LUZ II: 65 % - 71 jogos/46 vitórias e 18 empates/7 derrotas
ANTIGO ESTÁDIO DA LUZ
DERROTAS DO BENFICA A JOGAR EM CASA
Nos primeiros anos do século XXI, o Benfica já sofreu em casa mais derrotas do que ao longo das três décadas de ouro, os anos 60, 70 e 80, quando vencer na Luz era, realmente, uma enorme proeza. Em toda a década de 60, o Benfica sofreu apenas três desaires em casa, um em 1962 (FC Porto) com Fernando Riera, outro em 1965 (Sporting) com Bela Guttmann e um terceiro já em 1970 (contra a CUF) com Otto Glória.
ANOS 40: 6
ANOS 50:14
ANOS 60: 3
ANOS 70: 4
ANOS 80: 4
ANOS 90: 13
SÉCULO XXI: 17
João Querido Manha