Vão aumentar processos judiciais de despedimento
O professor de Direito Jorge Leite diz que o trabalhador vai ver reduzida a liberdade de programar a sua vida e não vislumbra redução da precariedade fraudulenta.
A proposta de lei de revisão da legislação laboral tem aspectos positivos e negativos, defende Jorge Leite, um dos mais ouvidos especialistas em direito de trabalho. Entre os positivos, encontra-se a nova forma de repartição da licença parental e a simplificação do modelo de reacção a um despedimento ilícito. Mas a proposta possui bastantes aspectos criticáveis e mesmo susceptíveis de ser inconstitucionais. Em entrevista escrita, em dois momentos, o jurista expõe as suas opiniões sobre esses pontos.
Comecemos pelos pontos positivos. Por que razão elogia o novo modelo de reacção contra um despedimento ilícito?
Não se trata, propriamente, de um elogio. O que tenho dito é que guardo uma expectativa positiva. À primeira vista, a simplificação do impulso inicial a cargo do trabalhador e a transferência para o empregador da obrigação de apresentar a petição inicial de justificação do despedimento e carrear os elementos probatórios dos fundamentos invocados facilitam a reacção contra os despedimentos.
A medida parece justa. Afinal, o empregador é, no processo disciplinar, um juiz em causa própria. Penso que o novo modelo tende também a compensar a simplificação do processo disciplinar e a redução, a meu ver excessiva, de 12 para dois meses, do tempo que o trabalhador dispõe para reagir contra o despedimento. Porém, só a prática mostrará se a expectativa se confirma.
Um efeito poderá antecipar-se: vai aumentar o número de processos judiciais.
Espera um aumento dos despedimentos?
Esta é uma via para tornar mais célere o despedimento. A mera simplificação do processo tenderá a estimular o seu uso e, portanto, o despedimento. Vai ter ainda um outro efeito: reduz a possibilidade de o empregador cometer erros processuais.
Corre a ideia de que as nossas leis dificultam excessivamente os despedimentos. Nas nossas sociedades, o trabalho é o único meio digno de vida da esmagadora maioria das pessoas, pelo que permitir que alguém possa, sem um motivo forte, privar outrem deste bem tão essencial seria permitir um verdadeiro atentado a um direito humano básico. Sinceramente ou não, as instâncias internacionais têm-se preocupado com este problema. Veja-se o que se passa com as chamadas "saídas negociadas", que encobrem verdadeiros despedimentos, muitas vezes sem motivo legítimo; com as comissões de serviço, com o período de experiência e com essa estranha figura da caducidade, da falsa caducidade, atrás da qual se escondem igualmente verdadeiros despedimentos.
Não foi por má vontade que o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia condenou Portugal por insuficiente transposição da directiva sobre despedimentos colectivos. Tudo continuou a passar-se como se nada tivesse acontecido...
Qual a sua opinião sobre o aumento do período experimental de três para seis meses?
Falar de período experimental é falar de um período de despedimento livre. Não se contesta o facto de a fase inicial do contrato servir para as partes avaliarem a relação. Contesta-se o alargamento brutal de um período de experiência que já não era curto. Com um período tão extenso de despedimento livre, para quê recorrer ao contrato a prazo?
Esta medida esbarra, porém, com um pequeno problema de índole jurídica: como compatibilizá-lo com o princípio da estabilidade e a regra da proibição de despedimento sem justa causa, ambos constitucionalmente consagrados?
Na sua opinião, é inconstitucional?
Se conjugarmos o princípio da proporcionalidade (art. 18.º) com o da estabilidade (art. 53.º), a resposta, a meu ver, só pode ser afirmativa.
O ministro do Trabalho alega que apenas se uniformizou os tempos de período experimental previstos na lei. O que acha?
Antes de mais, não uniformiza; o Código continua a prever períodos superiores para certos casos. Depois, a uniformização tanto poderia ser feita por cima como por baixo ou por um outro período situado ou não entre ambos. Por fim, a uniformização de tratamento de situações diferentes é uma forma de violação do princípio da igualdade.
É constitucional o regime de trabalho em comissão de serviço?
A figura da comissão de serviço é, talvez, um dos mais eloquentes exemplos de revisão constitucional por via de lei ordinária. A figura foi introduzida com um perfil jurídico, já então de constitucionalidade duvidosa, perfil que leis posteriores vão quase silenciosamente modificando até a transfigurar totalmente. Aquilo que é designado por "comissão de serviço de trabalhadores externos" é um contrato de trabalho mal disfarçado de comissão de serviço cujo regime se traduz na faculdade de cada uma das partes lhe pôr termo a todo o momento, sem invocar qualquer motivo. O despedimento passa a ser livre, ou seja, é um contrato que a lei subtrai à regra constitucional da proibição de despedimento sem justa causa. Será compatível com o art. 53.º da Constituição?
O objectivo de conciliar o trabalho e a família é prejudicado pelos horários de trabalho mais flexíveis?
O Código reforça os poderes do empregador para alterar tempos e horários de trabalho, agrava a sujeição do trabalhador às decisões do empregador relativas ao número de horas de trabalho diário e semanal.
O trabalhador vai ver reduzida a liberdade de programar a sua vida, fica mais condicionado na conciliação do tempo de trabalho com o tempo familiar, cultural, recreativo, etc. As regras implicam uma maior intensidade de trabalho e até uma provável redução dos rendimentos do trabalhador. Trabalhar mais por menos parece ser, aliás, uma das marcas deste grupo de normas.
As medidas de conciliação da vida profissional com a vida familiar tendem a compensar as medidas que a dificultam, mas o saldo é francamente desfavorável aos trabalhadores.
O Governo alega que "a forma mais dura de conciliar a vida familiar e profissional é a impossibilidade de existir vida profissional"...
Alega? Seria um argumento tão absurdo como o daqueles que alegam que ter um emprego, sobretudo um emprego digno, é um privilégio. É uma subversão total de valores. O emprego deveria ser o status normal de quem o procura e a falta dele um drama humano e social.
Parecem-lhe eficazes as propostas de combate à precariedade?
Tenho muitas dúvidas. Não serão totalmente irrelevantes, mas não creio que reduzam significativamente a precariedade fraudulenta.
Aliás, a medida invocada como bandeira do combate é ambígua e é insuficiente. É, antes de mais, ambígua.
Será que considerar os falsos "recibos verdes" uma contra-ordenação muito grave vai significar que nenhuma outra sanção será aplicável ao infractor? Escondendo os falsos "recibos verdes" verdadeiros contratos de trabalho, não deverá a fraude ser também sancionada com a conversão do vínculo naquilo que é de facto e de direito?
É insuficiente não apenas porque, estranhamente, deixa de fora outras formas de precariedade fraudulenta a que recorrem com frequência entidades privadas e públicas - como é o caso das falsas externalizações (outsourcing) -, mas também porque é uma medida branda. Confronte-se com o Código Penal espanhol, que manda castigar com penas de prisão de seis meses a três anos e multa de seis a 12 meses os que, mediante engano ou abuso de situação de necessidade, imponham aos trabalhadores condições laborais ou de segurança social que prejudiquem, suprimam ou restrinjam os direitos reconhecidos por disposições legais, convenções colectivas ou contrato individual.
Finalmente, as omissões. Havia assuntos importantes que ficariam por tratar?
Creio que o Código continua prisioneiro de concepções antigas, não enfrenta alguns dos mais significativos fenómenos da actualidade, como é o caso das empresas em rede, e insiste na tendência para a empresarialização do direito do trabalho, dele fazendo um instrumento de gestão, assim reduzindo, consequentemente, a dimensão humana do mundo do trabalho e sujeitando os direitos do ser humano no trabalho aos imperativos da economia de mercado. Os direitos são também modos de regulação das relações sociais, mas modos orientados por imperativos éticos, de justiça, de dignidade, de igualdade, como insistentemente salientam - a meu ver bem - muitos autores.
HÁ RISCO DE PERDA DE DIREITOS DO TRABALHADOR
A caducidade das convenções colectivas pode levar o trabalhador a "perder, de um momento para o outro, o estatuto colectivo que o abrangia, perdendo as regalias nelas consagradas", sustenta o jurista Jorge Leite. A caducidade vigora desde o Código do Trabalho em 2003. Mas o Governo alega que a sua revisão, sem a pôr em causa, evita o vazio contratual ao criar uma nova fase de arbitragem - "arbitragem necessária".
Mas, para Jorge Leite, o risco subsiste. "Se o Governo quisesse que a arbitragem funcionasse como tal, haveria de prever o seu desencadeamento para o período que precede a caducidade e não para o período que se lhe sucede." O resultado será, "se é que não tem como objectivo, aprisionar os sindicatos às propostas dos empregadores. A pressão para concluir acordos passa, praticamente toda, para o seu lado". Os empregadores não correm riscos, se não negociarem.
"O sistema está arquitectado de modo a aparecer sempre um sindicato disponível para assinar acordos", continua o jurista. "O anunciado mecanismo da representatividade das organizações de trabalhadores e de empregadores poderá vir a resolver alguns problemas, mas, para já, o Código não faz mais do que adiar a sua aplicação". O novo Código "promove a pulverização sindical, envia aos trabalhadores sinais de desnecessidade de sindicalização, abrindo as portas à adesão individual às convenções colectivas". Ao permitir "a fixação, por convenção colectiva, de piores condições do que as previstas na lei, dificilmente se poderá dizer que não promove o enfraquecimento sindical.
Em que aspectos? É o caso do "papel reservado à administração, quer no que respeita ao poder de estender as convenções a não sindicalizados, quer no que respeita aos seus poderes para as declarar caducadas, quer ainda no campo da arbitragem obrigatória e necessária. É, no mínimo, estranho ser um ministro a fazer o papel de estrela no firmamento dito da autonomia colectiva".
Jorge Leite, 69 anos, natural de Marialva, concelho de Meda (Guarda). é um dos juristas de direito laboral mais conceituados. Antifascista, foi suspenso em 1973 pela PIDE/DGS das funções de professor da Faculdade de Direito em Coimbra, em consequência das suas opiniões. Militante comunista, foi deputado, tendo saído do PCP em 1989. É autor de diversas publicações de direito e de conhecidas colectâneas de legislação laboral anotadas, É árbitro para a definição dos serviços mínimos. Foi professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito de Coimbra até Março de 2008 e é, desde Maio passado, director e professor do Departamento de Direito da Universidade Lusófona do Porto.
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