Mudam-se os tempos, mas ficam as mesmas práticas
Congresso. Enquanto os mais novos olham para o MP como uma “carreira aliciante”, os seniores estão preocupados com o futuro. O DN faz um retrato de uma magistratura obrigada a modernizar-se.
Luís Caldeira esteve durante a manhã de ontem a atender os cidadãos de Vila Nova da Praia da Vitória, Açores. Procurador do Ministério Público (MP) naquela comarca disse ao DN fazer questão de explicar “cara a cara” algumas dúvidas aos cidadãos que o procuram no horário de atendimento ao público. “Não trocava esta profissão por dinheiro nenhum”, disse o magistrado, que integra uma nova geração de procuradores que está a dar os primeiros passos nesta magistratura.
Novos procuradores que, por agora, consideram como “aliciante” a carreira do MP. “É uma função completamente diferente da do juiz. Aqui há mais dinâmica, mais investigação, mais proximidade com as pessoas”, referiu Luísa Sarmento, 31 anos, procuradora no Tribunal de Vimioso depois de um estágio na comarca da Covilhã. Sobre o facto de ter escolhido o MP e não a magistratura judicial (onde, em termos remuneratórios, poderia progredir mais rapidamente), a magistrada garantiu não estar preocupada com a questão, preferindo realçar o “nível de acção” que o MP permite: investigação criminal, família e menores e questões cíveis. O mesmo sublinhou Teresa Silveira, 30 anos, procuradora na comarca de Almeirim: E uma magistratura aliciante, porque tem a iniciativa”, enfatizou a magistrada que, depois do estágio na comarca de Loures, começa a escalar a lenta e pesada “cadeia alimentar” do MP.
Por razões históricas, o actual MP está assente numa estrutura pesada, desde procuradores adjuntos, procuradores da República, a procuradores coordenadores, passando pelos procuradores distritais, aos directores de departamentos, mais um vice-procurador-geral até ao número um da hierarquia: o procurador-geral da República. Em qualquer empresa moderna, esta estrutura seria, de imediato, racionalizada, até para permitir maior fluidez. Mas, como salienta o presidente do sindicato dos procuradores, António Cluny, “o MP não é uma empresa”.
Não é, mas, como admitiu ao DN Pinto Monteiro, o actual líder desta estrutura, alguma coisa terá de ser feita: “O MP, como instituição que é, tem de acompanhar a evolução da sociedade e das demais instituições com as quais se relaciona permanentemente.” Certo é que, qualquer que seja a vontade de mudar, haverá muitas resistências internas. “O problema não está nos magistrados. A grande maioria é bem preparada e honesta. A questão está na estrutura, muito antiquada, quase uma estrutura feudal já ultrapassada. O grande problema não são os recursos humanos, mas a estrutura”, considerou António Barradas Leitão, advogado, membro do Conselho Superior (CSMP) eleito pela Assembleia da República.
Para este advogado, o CSMP deve estar muito atento e ser “meticuloso” na regulamentação do no Estatuto do MP. Uma das questões mais sensíveis prende-se com a pouca clareza do diploma em relação à movimentação de magistrados. “O princípio da estabilidade do lugar não é um privilégio do magistrado, mas sim uma garantia de isenção e imparcialidade nas decisões que toma. E isto beneficia os cidadãos. Se o magistrado tiver esta garantia, fica mais sujeito a pressões” vaticinou António Barradas Leitão.
Já José António Barreiros, presidente do conselho Superior da Ordem Advogados, optou por comentar um pouco o debate. Indo mais além das questões meramente estatutárias: “O problema do MP não é de estatuto, mas sim de prática e actuação. O MP não pode ficar à mercê de pare que, pela gestão do tempo dos processos e a simultaneidade com certos momentos políticos, tem uma agenda própria”. É óbvio que esta farpa Barreiros ficará de fora da discussão que, entre hoje e manhã, vai decorrer no Congresso Extraordinário do Sindicato do MP.
Entrevista António Cluny, Presidente Do Sindicato Do MP
“Há três ou quatro processos que vão marcar o futuro da democracia”
Congresso extraordinário. Justifica-se este toque a reunir?
O congresso realiza-se em função apenas do cumprimento de uma determinação da assembleia-geral do SMMP, que foi capaz de prever que este seria o momento exacto para o debate sobre o novo Estatuto do MP.
O que é que o novo Estatuto do MP tem que cause tanta preocupação?
O Estatuto pode ter repercussões importantes na qualidade da justiça, objectivo para o qual o MP está encarregado de contribuir. Houve alterações que criaram, no mínimo, cláusulas abertas que têm de ser preenchidas de forma a que não restem dúvidas de que o MP continua a ser uma magistratura que se rege por garantias constitucionais. Há o problema de as comarcas actuais não serem, como antigamente, uni-concelhias. Com o novo mapa judiciário, há comarcas que distam 200 km. Se se der o poder à hierarquia de movimentar magistrados nesse amplo espaço, isso coloca em causa o princípio da estabilidade. Que não visa a defesa da vida pessoal do magistrado, mas pretende dar garantia de que a sua carreira não é afectada devido às posições que toma nos processos.
Acredita que se um magistrado tiver muitos processos para despachar, a hierarquia o transfira, correndo o risco de atrasar ainda mais o desenrolar dos mesmos?
O perigo é que possam ser substituídos por outros que tenham uma orientação diferente para os processos em concreto. As actuais garantias existem para evitar a escolha de determinados procuradores para certos processos em função de determinados interesses.
Uma das propostas do SMMP é que o acesso ao DCIAP seja por concurso. Não acha normal que quem esteja à frente daquele departamento tenha a faculdade de escolher directamente uma equipa?
O MP não é uma empresa. É uma estrutura que dirige processos que contendem com direitos, liberdades e garantias. O concurso significa que, pelo menos do ponto de vista curricular, se coloca o lugar a concurso e o Conselho Superior escolherá as pessoas mais adequadas. Se não for assim, no fundo, acabam sempre por ser escolhidas as pessoas que trabalham nos grandes centros, as que estão mais próximas dos poderes. Fora, também há excelentes magistrados. O que não podemos admitir é que alguém esteja num departamento deste tipo por confiança, não se sabe bem de quem ou de quê. Não podemos permitir este tipo de colocações que sempre levantam suspeições.
“A capacidade que o MP tiver de, com objectividade, eficácia e também total transparência, levar a cabo essas investigações ditarão, por certo, o destino da actual organização e o papel que nela desempenha ou há-de vira desempenhar esta magistratura”. Isto está num editorial do Sindicato. O que pretende insinuar?
Não é insinuação. Estamos num momento muito crítico, com processos muito críticos, quase emblemáticos. Exige-se que não restem nenhumas dúvidas nem suspeições sobre a actividade do MP, seja do ponto de vista técnico ou do sentido da decisão final. Todos estes processos, e três ou quatro em particular, marcarão, num momento de crise social, económica e eventualmente política, - isto é uma apreciação estritamente pessoal - o futuro da democracia portuguesa.
Não está a exagerar?
Não. Há aqui questões muito complicadas, que nunca foram perceptíveis aos cidadãos. A sociedade portuguesa é confrontada com certo tipo de questões que têm a ver com a transparência do sistema e antes não o era. E estas situações, para o bem e para o mal, passam pelo MP. A capacidade que o MP tiver para apresentar resultados marcará o regime no seu todo e a parte que diz respeito à capacidade do sistema judicial em intervir neste tipo de situações.
O que é que leva o sindicato a profetizar, numa das teses ao congresso, o “fim” do MP?
Não é preciso profetizar muito. A Lei de Política Criminal, se não é, raia a inconstitucionalidade, limita já o MP. Com um Estatuto que meta entre parêntesis as garantias previstas na Constituição, pouco resta para que o MP possa ser considerado uma magistratura.
A carreira de procurador é aliciante?
Não é. Houve uma proposta acordada com o Governo e o PS que premiava o mérito de quem trabalhava mais e melhor e distinguia ainda a formação dos magistrados.
O sindicato também não tem relações institucionais com a Ordem dos Advogados. É por causa do bastonário, Marinho Pinto?
Temos relações institucionais com o Conselho Superior, com os conselhos distritais, etc. Quem não tem boas relações connosco é o bastonário. Como ele acha que o SMMP não representa ninguém, não queremos criar-lhe nenhum embaraço, convidando-o para o congresso.
Os diferentes casos do ministério público
FRACASSOS
Maddie
É um rotundo falhanço do MP. Aliás, exceptuando uma ou outra diligência menor, pode dizer-se que não houve MP (como titular da acção penal) neste processo. O caso revelou ainda como a estrutura demorou a reagir a uma crise. Por esclarecer ficou uma dúvida: o MP concordou ou não com a constituição dos McCann como arguidos?
Felgueiras
O que começou com um polvo de corrupção, negociatas e tráfico de influências acabou com a condenação de Fátima Felgueiras por crimes menores face ao que estava em jogo. A autarca foi condenada por utilização indevida do carro da câmara e a repor um pouco mais de 150 euros. Pouco para uma acusação que falava em corrupção e que criou uma teia de interesses e ligações perigosas aos negócios da reciclagem de lixo. A autarca já recorreu para a Relação de Guimarães, pedindo a absolvição total
Pedroso
Pode-se discutir se havia ou não provas, mas as coisas são o que são. O MP acusou Paulo Pedroso, que seria o arguido cabeça de cartaz no processo de pedofilia. Não foi a julgamento e, ainda por cima, uma juíza considerou que a sua prisão preventiva foi excessiva, obrigando o Estado a pagar-lhe 100 mil euros de indemnização. A decisão foi alvo de recurso.
SUCESSOS
Apito dourado
Além de uma vitória em julgamento (a maior parte dos arguidos foi condenada no processo principal), houve um efeito externo deste processo. As escutas e a investigação revelaram as catacumbas do futebol português, algo que só era falado no “diz que disse”. A expressão “moralização do futebol” ganhou um sentido prático depois deste caso.
Sucatas
Enquanto em Lisboa parece ser difícil juntar à mesma mesa inspectores da Policia Judiciária e quadros da Inspecção Tributária, uma magistrada do MP de Gondomar conseguiu tal feito. Conclusão: está tem nada uma investigação que e volve mais de 30 arguidos que terão lesado o Estado em mais de 100 milhões de euros de fuga ao fisco. O esquema girava à volta de emissão de facturação falsa. O IVA era alvo dos suspeitos que, posteriormente, terão branqueado o dinheiro com investimentos no imobiliário.
“Gang Dos Ferreiras”
Depois de meses de investigação estreita com a PJ do Porto, o chamado,” Gang dos Ferreiras” que atormentou o Vale do Ave, foi condenado por associação criminosa (um crime de difícil prova em tribunal). Posteriormente, o mesmo procurador consegue a condenação de um elemento do gangue pela morte de um inspector da PJ do Porto.
DESAFIOS
‘Furacão’
Durante os últimos anos, bancos, empresas e particulares estiveram sob suspeita. Os resultados que o MP apresentar deste processo (e já são alguns, sobretudo relacionados com a reposição de impostos em falata) serão escrutinados ao pormenor. Devido aos interesses em jogo, não há margem para falhas, negligências ou erros grosseiros.
BPN
É um “filho” do “Furacão”, mas as ligações dos eventuais envolvidos podem fazer com que este caso corte rapidamente o cordão umbilical com o pai, transformando-se num escândalo por si só. O banqueiro Oliveira e Costa foi preso preventivamente. A primeira batalha para o MP vai decorrer no Tribunal da Relação que tanto pode manter a prisão como revogá-la. Publicamente, as expectativas estão altas. As ligações entre banca e poder político podem vir ao de cima. Resta saber até onde o MP está disposto a ir.
Sobreiros
Nos últimos anos, foi o caso que tocou o coração da governação de um país. Há suspeitas que por detrás de um despacho assinado por três ministros esteja um rio de tráfico de influências com contrapartidas monetárias para o COS. Resta saber se o processo chega a julgamento. E, caso chegue, se há ou não condenações ou falta de provas.
P&R
O que é o Ministério Público?
É uma magistratura autónoma, com poder de iniciativa nos tribunais. Além da área penal, compete-lhe representar o Estado e os cidadãos mais indefesos.
Quem manda no MP?
Como magistratura hierarquizada, a figura do procurador-geral da República está no topo. Porém, os magistrados gozam de autonomia. E só podem receber ordens por escrito. Porem ainda invocar objecção de consciência quando alguma ordem viole a sua consciência jurídica.
O MP manda nas investigações?
A lei portuguesa divide o mal pelas aldeias. Por um lado, diz que o MP é o “titular da acção penal”, ou seja, manda. Por outro, dá à PJ “competência técnica e táctica” para investigar os crimes mais complexos. O que é que sucede? Muitas vezes, há conflitos nas investigações sobre qual a melhor estratégia
@ DN