Discurso Procurador-Geral República
DISCURSO DE SUA EXCELÊNCIA, O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Juiz Conselheiro Dr. Pinto Monteiro
«Está hoje divulgada, a vários níveis, a ideia de que a Justiça funciona mal ou não funciona.
Queixa que, curiosamente, e sem surpresa, com maior ou menor intensidade, tenho ouvido em vários países onde o exercício do cargo me tem levado.
Enquanto Conselheiro deste Supremo Tribunal, antes, pois, de ocupar o lugar de Procurador-Geral da República, afirmei e escrevi que nenhum interveniente no processo judiciário está inocente no deficiente funcionamento da Justiça. Desde o legislador, passando pelos aplicadores da lei e até ao destinatário, todos têm responsabilidades no percurso acidentado que a aplicação da justiça enfrenta no dia-a-dia.
Disse e mantenho, hoje até com melhor conhecimento de causa.
Compete-me, contudo, falar somente do Ministério Público, respeitando assim a preocupação que manifestei logo na minha tomada de posse, quando defendi que não ultrapassaria os poderes que a Constituição, os Estatutos e a Lei conferem ao Procurador-Geral da República, mas também não abdicaria de nenhuma competência nem deixaria de exercer todos os poderes que me foram confiados, quer em relação ao exterior, defendendo a autonomia do Ministério Público quer para o interior, recordando que o Ministério Público é uma magistratura hierarquizada, competindo ao Procurador-Geral da República, além do mais, dirigir, coordenar e fiscalizar a actividade do Ministério Público.
Dentro destes parâmetros falarei do Ministério Público e da Justiça, aqui e agora.
A Constituição saída do 25 de Abril e o Estatuto respectivo consagraram a autonomia do Ministério Público.
Autonomia externa no sentido de que o Ministério Público é uma magistratura independente de todos os demais poderes do Estado, sendo um órgão de Justiça, integrado nos Tribunais e ao serviço dos cidadãos e do Estado.
A Procuradoria-Geral da República, que compreende o Conselho Superior do Ministério Público e o Procurador-Geral da República, é presidida por este e é o órgão constitucional responsável pelo funcionamento do Ministério Público, tendo os poderes de gestão, de orientação geral, de avaliação e disciplinares.
A Magistratura do Ministério Público está organizada e tem, necessariamente, de funcionar com uma forte componente hierárquica.
A autonomia interna, por sua vez, no caso do Ministério Público, abrange o processo decisório do caso concreto, estando os seus magistrados obrigados a respeitar critérios de objectividade e de legalidade estrita, bem como a cumprir as directivas, ordens e instruções dimanadas da hierarquia, só as podendo recusar com fundamento na ilegalidade das mesmas ou invocando "grave violação da sua consciência jurídica".
Essa autonomia, na sua dupla vertente, não é algo que tenha sido fixado como um privilégio dos Magistrados do Ministério Público, destinando-se antes a ser uma garantia do cidadão na aplicação da justiça, assegurando independência e isenção.
Sendo assim, a autonomia interna não se pode confundir com o livre exercício de vontade na área de competência de cada um, nem com um corporativismo absolutamente desajustado da época em que se vive.
A independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e o respeito institucional são exigências do Estado de Direito e que não estão nem podem estar em discussão.
Mas, se como Procurador-Geral da República tenho como indiscutível a autonomia do Ministério Público, já assim não acontece com o figurino existente no que respeita ao funcionamento da Instituição.
Tenho repetidamente afirmado que é preciso restaurar e reforçar a credibilidade da justiça, tornando-a mais transparente, mais eficiente, mais credível.
Para isso é necessário, além do mais, fortalecer a Magistratura do Ministério Público.
Não sendo este o lugar para enumerar reformulações do Estatuto, é, contudo, possível enunciar as grandes linhas de necessária alteração, para que o Ministério Público se afirme como uma Instituição fundamental do Estado de Direito ao serviço do cidadão.
Em primeiro lugar urge, com imaginação, desbloquear a carreira do Ministério Público. Permanecer 20 anos como Procurador-Adjunto, num início de carreira desgastante, cria rotinas nefastas, e arrasta uma falta de motivação, prejudicial ao exercício do cargo. Premiar o mérito e sancionar o demérito também deve passar pela criação de incentivos, sendo um deles a ascensão mais rápida na carreira.
É necessário um Ministério Público especializado, com capacidade de adaptação e resposta a uma realidade social em permanente mutação. Como proceder a essa especialização e como enquadrá-la nas atribuições do Ministério Público é tarefa a estudar e desenvolver.
É fundamental acabar com o cinzentismo da uniformização, que procura instalar-se, para distinguir e estimular os que se esforçam e lutam para melhor exercerem o seu cargo.
É imperioso viabilizar e defender a colocação dos Magistrados de acordo com as suas aptidões, especializações e mérito, abandonando o sistema de mera antiguidade ou interesse pessoal de colocação.
É preciso remodelar os serviços de inspecção e agilizar os seus procedimentos, por forma a obter rápidas avaliações, que se preocupem com o mérito substancial e não meramente formal.
É necessário consolidar o papel das Procuradorias-Gerais Distritais e redefinir os poderes e os deveres dos magistrados em funções de coordenação ou de direcção.
Importa melhorar os mecanismos de enquadramento e de apoio dos magistrados em início de carreira.
Impõe-se ainda institucionalizar a criação de unidades especiais, dotando-as de meios adequados para conseguir dar respostas em tempo oportuno a fenómenos ou acontecimentos de especial relevância, gravidade ou complexidade.
Mas não só uma reestruturação do Ministério Público é essencial para que tenhamos uma melhor Justiça.
É urgente hoje, mais do que nunca, reafirmar que nada justifica que alguém goze de especiais privilégios na aplicação da justiça (para além dos que a própria lei determina), como nada justifica que alguém seja especialmente visado só por ocupar lugar de relevo ou porque a opinião pública em certo momento o exige.
Há que afirmar, clara e inequivocamente, que todos são iguais perante a lei, investigando-se eventuais ilícitos sem olhar a quem eles respeitam. Afirmá-lo e praticá-lo.
É preciso que os Magistrados do Ministério Público, dos mais novos aos mais antigos, digam sem tibieza que não se deixam influenciar, sugestionar, impressionar e menos ainda intimidar por qualquer tipo de pressão ou de campanha, seja em que sentido for. E diz a experiência de muitos anos que campanhas dessas são vulgares.
Passa por aí a apreciação da independência dos Tribunais e a autonomia do Ministério Público.
Dois outros aspectos assumem capital relevância: a lentidão da justiça e a deficiente articulação entre o Ministério Público, como detentor do exercício da acção penal, e outros intervenientes no processo judiciário, designadamente, os Órgãos de Polícia Criminal.
Os dois aspectos estão interligados no que toca à investigação criminal.
Importa, contudo, começar por salientar, por um lado, que o tempo de duração da investigação em Portugal em nada fica diminuído quando comparado com a investigação na maior parte dos restantes países, onde, obviamente, se respeitem os direitos dos cidadãos, designadamente, dos arguidos.
Por outro lado, há que realçar que a Justiça não pode ser tão lenta que saiam frustrados os objectivos que visa alcançar, mas também não pode ser tão rápida que deixe de ser justiça.
Sem entrar numa apreciação de fundo do mérito ou demérito das várias reformas legislativas, que recentemente tiveram lugar, parece já ser certo que não contribuíram para uma maior celeridade na administração da justiça.
Vários passos têm sido dados pelo Ministério Público e Órgãos de Polícia Criminal no sentido de melhorar a articulação, a cooperação, a colaboração, a troca de informações em tempo útil, mas há ainda um longo caminho a percorrer.
Dessa ainda deficiente conjugação de esforços e tarefas, resultam, necessariamente, delongas em algumas investigações.
Não basta o Procurador-Geral da República determinar prioridades para uma investigação, ou o Magistrado que a conduz dar o carácter de urgência a certos processos, porque é muitas vezes necessário realizar exames, perícias, buscas, inquirições, reconstituições, expedir rogatórias, pedir colaboração internacional. Tudo isso será realizado por entidades e instituições que cooperam com o Ministério Público e essa colaboração, por razões múltiplas, nem sempre é pronta e eficaz. Por carência de meios humanos, por escassez de meios técnicos dessas instituições, por falta de pronta resposta internacional (apesar dos múltiplos organismos hoje existentes, destinados a reforçar a colaboração internacional), por limitações e imposições legais, por excesso de garantismo e por variadíssimos outros motivos, grandes processos arrastam-se sem que o Ministério Público tenha possibilidade de só por si resolver os problemas criados. A lentidão daí resultante levará muitas vezes ao aparecimento de críticas, a insinuações injustas.
Lanço daqui um repto, que é também um pedido, aos Senhores Jornalistas.
Quando processos, hoje tão mediatizados, caírem no domínio público, o que, necessariamente, acontecerá por força da lei vigente, consultem-nos com atenção e verificarão que a grande maioria de casos com demoras processuais não se deve à actuação do Ministério Público.
Um exame que leva anos a realizar, uma perícia que se arrasta durante meses, uma rogatória que demora anos a cumprir, são obstáculos que o Ministério Público não tem condições para superar. Algumas das dificuldades poderão vir a ser minoradas com a recente criação dos Gabinetes de Apoio, ideia que se saúda.
Com essa divulgação, uma Comunicação Social, isenta e esclarecida, contribuirá também assim para uma justiça mais transparente, qualidade essencial para a credibilidade da mesma.
É imperioso que o país tenha um Ministério Público com dinamismo, eficácia e capacidade de adaptação à realidade social.
Um Ministério Público capaz de responder à evolução dos tempos e aos desafios que vão surgindo.
Como Procurador-Geral da República acredito, convictamente, que vamos ter esse Ministério Público de que o país precisa.
E é também imperioso acreditar que se iniciaram novos caminhos na aplicação da justiça, que poderão levar a melhores resultados do que aqueles que vêm sendo obtidos. É preciso dar o benefício da dúvida e esperar. Este ano, é, e vai continuar a ser, um ano difícil para a Justiça, a todos os níveis: criminal, cível, comercial, família, menores. Os tempos que se avizinham não são fáceis, mas pessoalmente penso e quero pensar que os magistrados e os tribunais portugueses vão ser capazes de superar as dificuldades e conseguir uma melhoria na difícil administração da justiça.
Senhor Presidente da República
Excelência
Esta cerimónia não teria, obviamente, o significado e a força que tem sem a presença prestigiante de Vossa Excelência.
O Presidente da República é o garante máximo do regular funcionamento das instituições democráticas e, por isso, nunca é demais enaltecer a atenção esclarecida, o interesse e a preocupação que Vossa Excelência dedica à causa da Justiça.
Senhor Presidente da Assembleia da República
Excelência
A Assembleia da República, a que de forma elevada Vossa Excelência preside, é a casa onde se discutem as grandes questões da Justiça, os Diplomas fundamentais do País, pelo que assume grande relevo a presença de Vossa Excelência.
É com toda a consideração que saúdo o Senhor Ministro da Justiça, salientando, com verdade, que, em mais de dois anos que venho exercendo o cargo de Procurador-Geral da República, sempre o Senhor Ministro se mostrou disposto a dialogar, analisar e reanalisar toda e qualquer questão ligada à justiça, dentro de um relacionamento institucional correcto.
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados.
Permitam-me que repita parcialmente o que disse o ano passado.
Penso que a intensificação do diálogo entre Magistrados Judiciais, Magistrados do Ministério Público e Advogados contribuirá positivamente para a melhoria do funcionamento da Justiça.
Termino saudando todos os presentes e em especial os Magistrados e funcionários com quem trabalhei durante anos neste Supremo Tribunal de Justiça.
Obrigado pela atenção».